quinta-feira, 29 de março de 2012

Estado Sociedade e cidadania: circunscrição, embate e conquista na construção do direito contra a violência e disparidades entre gênero e raça.

Gislane Sivirino da Rocha.
Resumo
A burguesia ao criar as noções de cidadania e direitos humanos, sem dúvida realizou um avanço para o progresso dando novos contornos para o Estado, passando a sociedade ao prelúdio de ser pensada como composta de cidadãos com direitos formais. Ao longo da história, a política pública promovida pelo Estado privilegiou uma pequena camada da população, a chamada elite, onde o privilégio de certa forma tornou-se um direito, que se traduziu na ampliação aos espaços de decisões políticas. Todavia denota-se que ao longo da história brasileira o Estado vem-se construindo/reconstruindo através de demandas expostas pela sociedade para legitimação dos direitos universais a todos os cidadãos e cidadãs.

Temas e questões – o surgimento da cidadania
Para discussão sobre cidadania tange aqui como ponto crucial de referência a Revolução Francesa, (final do século XVIII), tal processo revolucionário insurgiu da existência de uma nova classe social, que passa a ter seus interesses prejudicados em função da arrecadação de impostos sobre a mesma, esta classe obteve a denominação de uma forma genérica de burguesia. Além dos impostos que beneficiavam a nobreza e ao clero, a burguesia também se sentia lesada pelo controle rígido que o poder real exercia sobre os tributos.
A burguesia se via então na condição de lutar por sua liberdade, liberdade que lhe permitiria gerenciar seus próprios negócios e decidir sobre os impostos bem como seu uso. Para tanto se exigia, porém liberdade política, o que não obstante perfazia um caminho um tanto complexo, visto que no Antigo Regime o poder encontrava-se vinculado a classe no sentido de divindade, ou seja, a nobreza e o clero possuíam direitos e poderes ilimitados - concedidos por Deus. Sendo assim para alcançar a liberdade almejada era necessário tomar por noção a ideia de que todos nascem iguais. Desta forma tem-se igualdade como ideologia de que todos os seres humanos nascem com direitos iguais, extraindo-se o conceito de bens e rendas, elucidando na concepção de que os acessos a determinados direitos se tornam limitados em razão do poder aquisitivo.
No que tange à forma de governar do soberano, este outrora era competente para criar regras, realizar julgamentos, aplicar penas, etc. Após a emergência do Estado Moderno, há uma distribuição dos três poderes, sendo legislativo, executivo e judiciário. O fundamento do poder passa a ser o povo, e o exercício passa a ser executado por instituições reguladas por procedimentos, operadas por funcionários especializados (servidores públicos). Ao romper com o poderio divino, a burguesia em plena ascensão passa a aprovar leis que favoreçam a expansão dos negócios, que teve como consequência a abertura das portas para a chamada Revolução Industrial, marcando a entrada da humanidade naquilo que designamos como história contemporânea (1789).
Na idade contemporânea ocorre a Revolução Industrial, alterando a sociedade em diversos aspectos, como a formação de uma nova classe social denominada proletariado[1], e a urbanização da sociedade, fazendo com que a população migre do campo para a cidade. Estes trabalhadores passam então a lutarem por seus direitos como salários suficientes para alimentação, mais emprego, etc.
Há uma resposta de forma selvagem por parte dos novos Estados modernos, contraposto surgem algumas teorias como a do marxismo[2], socialismo científico[3], socialdemocracia[4], socialismo utópico[5], anarquismo[6], o anarco-sindicalismo[7], sindicalismo[8], dentre outras vertentes. Tais vertentes se focam na contradição entre o conceito de cidadania moderna e a limitação imposta na sociedade capitalista. Com diversas lutas e desafios os trabalhadores vão aos poucos conquistando seus espaços, como o direito ao voto, a organizar-se em sindicatos, limitação da jornada de trabalho, férias, dentre outros.
Com a Revolução Russa instaura-se o primeiro regime socialista da história através da criação da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) demonstrando uma forma de driblar o capitalismo. Deste ínterim surgem novos direitos como o do divórcio questionando de certa forma o poderio patriarcal existente direcionado à metade da população (as mulheres), passando a Europa a ser obrigada a observar a nova realidade concernente a direitos e cidadania.
Na segunda Guerra Mundial com a derrota do Nazi-facismo[9] e a potência mundial adquirida pela URSS durante a chamada guerra fria, fez com que fossem elevadas as idéias socialistas, o que obrigou a governos capitalistas, sobretudo na Europa Ocidental durante a década de 50 e 60 viabilizar concessões, como o sistema de educação, saúde pública e seguro-desemprego. Esta nova realidade foi avocada de Welfare State, o que fez com que principalmente a partir de 1960 houvesse por parte da parcela jovem contestação em face da entrada da mulher no mercado de trabalho, e incorporação da camada média da população em um nível mais alto de consumo. Neste período dentre outros acontecimentos há também uma marcante luta por direitos civis dos negros e americanos com o movimento Black Power[10]. Como conseqüências dos movimentos sociais nesta época surgem novas perspectivas de Estado, no intuito de possibilitar o canal à gestão democrática e participativa.


Pensando com a sociedade brasileira: da Colônia à República Velha
A sociedade brasileira por ser constituída de raízes portuguesas, herdou a característica de poder centralizado, patrimonial e com forte estrutura cartorial pós-colonização, além de uma estrutura regimental baseada na escravidão ainda nas primeiras décadas do século XVI, acarretando relações de poder que contrariam o modelo descrito para o Estado moderno.
Durante o período do Império (1822 a 1889) o Brasil apresenta-se reorganizando sua economia, no entanto ainda assim aceita uma organização de economia dependente do exterior, no que se concerne a importações de manufaturados e exportação de matéria prima. Neste ínterim para reforçar o processo de exclusão surgem em 1850 à lei de Terras legitimando a legislação portuguesa que deferiu a antigos senhores sesmeiros (titulares da sesmaria a qual eram destinadas porções de terras para desenvolvimento de produção agrícola), em detrimento de parcela da população que há muito vivia do cultivo da terra.
De outro lado a forma como se deu a abolição da escravatura no Brasil também foi excludente, o que concomitantemente fez com que após a abolição fosse engendrado no cenário nacional o financiamento da mão de obra européia a fim de substituir os escravos, mas não somente, havia também a desígnio de que mais brancos fossem integrados ao país. Todavia este contraste configurou em um contingente excedente de mão de obra, fazendo com que os ex-escravos viessem a ocupar trabalhos informais, subempregos além dos desempregados.
Neste contexto a partir da exclusão do negro das terras trouxeram outras conseqüências como a grilagem, demonstrando que o Brasil responde de forma diferente a vários processos pós-escravidão se comparado a determinados países. Este processo redunda de um momento estruturante para esta parcela da população que passa a depender de assistências emergenciais resultantes da pobreza.
A primeira revolta em que a população pobre ocupa o poder ocorre em meados de 1835 a 1840 na Província Imperial do Grão-Pará, substituindo radicalmente os pobres como representantes do povo provocando o Império do Brasil em forma de República. Em 1835 ocorre a Revolta do Malês no período do Império, retratando novamente a resistência dos negros, sendo estes impetuosamente debelados. Após a implantação da República mudam-se um pouco o norte das políticas, mas no que tange a economia esta continua nas mesmas molas propulsoras.
Durante a República Velha (1889 a 1930), a economia no Brasil esteve atrelada a mudanças na economia internacional principalmente a produção cafeeira.  Marcada pelo cunho positivista a Constituição de 1891, negou a universalização da educação básica, a qual incluiria mestiços e negros, delegando aos filhos da elite privilégios de cursarem uma universidade, com criação do curso de engenharia, direito e medicina.

Pensando com a sociedade brasileira: do período getulista à ditadura militar
A Revolução de 1930
A partir deste momento histórico mais precisamente o governo de Getúlio Vargas, foram elencadas algumas conquistas, como a diminuição da jornada de trabalho, que passa a ser de 8 horas, e o direito a férias dentre outros. Este governo passa a concentrar-se na repressão da Aliança Nacional Libertadora (ANL) alocando-a ilegalmente, o que provoca a revolta de 1935 (Intentona Comunista), a esta seqüência de fatos resultam o Golpe do Estado Novo por este governo, instaurando a ditadura que data de 1937 a 1945.
Todavia cabe ressaltar ainda neste governo a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) exemplificando caráter modernizador e industrializante ao país. Em 1943 houve a conquista do salário mínimo, a Consolidação das leis trabalhistas (CLT), o que favoreceu o controle da classe trabalhadora que crescia se organizando desde a década de 1920. No governo de Vargas somente os grupos que conseguiam se manterem em conformidade com os sindicatos eram recebedores de seus direitos, visto que neste momento os sindicatos principal intermediador entre capital-trabalho eram controlados pelo Estado, resultando em uma cidadania controlada.

A volta da democracia política
Com o fim do nazi-facismo em 1945, a ditadura do Estado Novo se tornou precária, levando Getúlio a liberar o regime permitindo a volta da democracia política. Com apoio dos segmentos das forças armadas sendo  convocada eleições para as quais se organizam no partido denominado União Democrática Nacional (UDN) houve uma organização em torno de um golpe contra o governo de Vargas. A partir de então vários outros partidos surgem no cenário.
No governo de General Eurico Gaspar Dutra (PSD), inicia-se o período populista com ações arriscadas como o aumento do salário mínimo para 100%, que se sucedeu de grandiosas greves na década de 1950 constando também da criação da Petrobrás.
Durante o governo de Juscelino Kubitschek, JK havia a promessa de desenvolvimento de 50 anos em 05, resultando em planos de metas elencando as principais áreas do governo. No que se concerne à base produtiva, a emissão exagerada consignou em desvalorização da moeda nacional, e conseqüente ampliação da divida brasileira em dólares, criando um círculo vicioso afetando o campo dos trabalhadores, uma vez que se desvalorizavam os salários gerando movimentos e greves contra a carestia, afetando de forma incisiva o crescimento do país no final deste governo.
Já no governo do presidente João Goulart através das reformas de base, buscava enfrentar o problema da divida e da descapitalização do Estado, restringindo o capital estrangeiro, nacionalização de empresas, etc. Este governo buscou a retomada da política de Getúlio Vargas, sendo o nacionalismo e a distribuição de renda o foco principal.

Pensando com a sociedade brasileira: da ditadura militar à Democracia
Em (1986), o Plano cruzado em termos econômicos ainda com estigma de superação por meio de política de cunho econômico, o Governo de José Sarney orienta-se na garantia de congelamento dos preços e salários com intervenção estatal na economia, em determinados momentos com interesses de setores importantes do capital. Estava-se aflorando a questão social, e a marca da política social como instrumento da ação do governo.
Outro governo que obteve impacto negativo investindo no mercado foi o de Fernando Henrique Cardoso (FHC), que durante dois mandatos cuidou de privatizar a coisa pública, na visão de Reforma do Estado com embasamento na privatização das empresas públicas e profissionalização do corpo administrativo do Estado.
Por sua vez o Governo de Luiz Inácio Lula da Silva opta por construir políticas públicas voltadas para a sociedade civil, tendo como principio a inclusão social para obter o crescimento econômico, o contrário do que se viu em outros governos anteriores. Deste processo resultam-se cerca de 12,8 milhões de pessoas fora da condição de pobreza absoluta, segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e abertura das portas para que com a mudança ocorrida fossem integradas inovação no quesito gênero e raça nas políticas públicas, tais como as seguintes medidas:

1) Publicação do Decreto 4564 instituindo o Programa de Erradicação da Pobreza;2) Criação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome;3) Criação das Secretarias Especiais da Mulher, da Promoção da Igualdade Social, da Pesca e dos Direitos Humanos, todas com status de ministério; 4) Início da política de recuperação da capacidade de gastos do Estado para viabilizar as políticas sociais; 5) Lançamento do Programa Fome Zero.(Curso de Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça. Vitória: Mod. 4, Estado e sociedade. Unid. I Estado, sociedade e cidadania. Pensando com a sociedade brasileira: da ditadura militar à Democracia, 2012.


Além da redução dos impostos sobre produtos industrializados e imposto sobre operação financeira, e do Programa de Aceleração do Crescimento, demonstrando que houve uma considerável inversão da política econômica no país.

A sociedade civil brasileira da redemocratização
Na década de 80 emerge uma nova cidadania a partir de demandas formuladas pelos movimentos sociais no país desde os anos 70, de cunho urbano envolvia questões urgentes como moradia, educação, saúde, saneamento, transporte, atravessadas por novos paradigmas como gênero, raça, etnia, etc. Tais reivindicações tinham como motivação agenciada pela classe média, procurando apontar para transformações societárias de matriz democrática, colocando em questionamento a cultura política, sendo esta a política com intuito de adoção de práticas sociais participativas para construção da democracia. Sendo assim a redefinição de práticas, mesmo as entendidas pelos discursos dos movimentos sociais expressam uma política social que não ficou restrita a uma estratégia política. Vale ressaltar que os projetos políticos assumem caráter de disputa para referências comuns como a participação, sociedade civil, cidadania e democracia. A disputa se torna acirrada podendo a qualquer momento o adversário levar vantagem. Destaca-se que as lutas para legitimação dos direitos universais a todos os cidadãos e cidadãs devem conter em sua essência uma política que reconheça as diversidades das demandas principalmente dos grupos marginalizados tornando-os sujeitos de direito.
Referências:
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
Curso de Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça. Vitória: Mod. 4, Estado e sociedade. Unid. I Estado, sociedade e cidadania. Temas e questões – o surgimento da cidadania, 2012. Disponível em: http://www.gppgr.neaad.ufes.br/file.php/117/Modulo4/mod4_unid1_atual.html. Acesso em 27/02/2012.
Curso de Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça. Vitória: Mod. 4, Estado e sociedade. Unid. I Estado, sociedade e cidadania. Pensando com a sociedade brasileira: da Colônia à República Velha, 2012. Disponível em: http://www.gppgr.neaad.ufes.br/file.php/117/Modulo4/mod4_unid1_atual.html. Acesso em 27/02/2012.
Curso de Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça. Vitória: Mod. 4, Estado e sociedade. Unid. I Estado, sociedade e cidadania. Pensando com a sociedade brasileira: do período getulista à ditadura militar, 2012. Disponível em: http://www.gppgr.neaad.ufes.br/file.php/117/Modulo4/mod4_unid1_atual.html. Acesso em 27/02/2012.
Curso de Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça. Vitória: Mod. 4, Estado e sociedade. Unid. I Estado, sociedade e cidadania. Pensando com a sociedade brasileira: da ditadura militar à Democracia, 2012. Disponível em: http://www.gppgr.neaad.ufes.br/file.php/117/Modulo4/mod4_unid1_atual.html. Acesso em 27/02/2012.
Curso de Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça. Vitória: Mod. 4, Estado e sociedade. Unid. I Estado, sociedade e cidadania. A sociedade civil brasileira da redemocratização, 2012. Disponível em: http://www.gppgr.neaad.ufes.br/file.php/117/Modulo4/mod4_unid1_atual.html. Acesso em 27/02/2012.

[1] - Formada por trabalhadores que vivem do seu salário para subsistência, presentes principalmente nas indústrias neste período.
[2] -Tipo de pensamento e análise social e econômica criada por Karl Marx, onde o alcance do socialismo seria por meio da abolição de classes, da revolução do proletariado, e da transição do capitalismo para o comunismo. Assim com a ascensão do proletariado, romperia com a propriedade privada da burguesia.
[3] - Também chamado de socialismo marxista, nasceu no séc. XVIII com Karl Marx e Friedrich Engels. Acreditavam que os trabalhadores poderiam superar o poder dos estados nacionais e que para acabar com a burguesia e o capitalismo deveria haver uma revolução internacional dos operários.
[4] - Acreditavam que a transição de uma sociedade socialista só poderia acontecer por meio de uma evolução da democracia, sem revolução.
[5] - Acreditavam que a implantação do sistema socialista ocorreria de forma lenta e gradual pautada no pacifismo, inclusive com vontade da burguesia.
[6] - É uma filosofia que tem como objetivo a eliminação de todas as formas de governo, coerção e governantes.
[7]  - uma vertente criada com intuito de transformar o modo de organização dos sindicatos, acreditando que este seria instrumento para mudar a sociedade, substituindo o poderio do Estado e do sistema capitalista pelo dos trabalhadores.
[8] Os sindicatos tiveram origem no século XVIII com a Revolução Industrial na Inglaterra. Emergiram da necessidade dos trabalhadores se organizarem-se em associações para negociação de suas condições de trabalho. No Brasil somente a partir da imigração italiana no século XX é que surgiram os sindicatos, onde em 1930 foi criado o Ministério do Trabalho regulamentando  em 1931 a sindicalização das classes patronais e operárias no país.
[9] - Termo utilizado para designar em conjunto o fascismo italiano.
[10] - Foi um movimento liderado por negros, que teve auge no final dos anos 60 e que enfatizou o orgulho racial, incentivando a criação de instituições culturais e provocou os políticos negros para promoção dos interesses coletinos inerentes aos negros.

(Postado por Gislane S.R)